Vinhos para recordar num ano para esquecer

Mind the Glass

“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.”

Esta é a frase que inaugura um conto fundamental e estruturante na literatura e filosofia do século XX. Escrito por Kafka, em 1912 e publicado em 1915, a Metamorfose rapidamente se transformou numa das obras mais estudadas do autor.

Este conto narra a história de um indivíduo afastado do sistema de relações humanas, arrancado da qualidade inerente à sua personalidade, sem autonomia e autodeterminação. A temática kafkiana acabou por ter inúmeras repercussões em algumas áreas. Uma das mais interessantes terá sido a marca profunda na literatura francesa, em especial nas obras de Sartre e Camus. Estes questionaram profundamente a existência humana: quem somos? O que fazemos? Para onde vamos? O que nos move?

Esta reflexão profunda e quase adolescente podia facilmente aplicar-se aos dias de chumbo que vivemos devido à pandemia. Tal como a muitos, também a mim a obra tocou profundamente, especialmente a temática da existência humana em toda a sua natureza. Algo que pode ser aplicado à atualidade.

2020 – Um ano kafkiano

Tal como muitas pessoas, passei uma boa parte do ano de 2020 sentado em casa a pensar no que deveria ter sido. Quase fomos transformados num Gregório Samsa coletivo devido à incapacidade de viver as nossas vidas de uma forma normal e gregária.

No dealbar do ano tinha a firme intenção de passar uma boa parte do meu tempo livre visitando vinhas velhas e provando vinhos novos. Rapidamente percebi que nenhuma dessas experiências estaria disponível em 2020. Com algumas exceções, as minhas memórias foram construídas com o que bebi em casa entrelaçadas com os desenvolvimentos diários da Covid-19.

Uma boa parte dessas recordações ficaram ligadas a vinhos muito diferentes do habitual e, por isso, foram capazes de questionar o meu mundo vínico e agitar algumas certezas pessoais. Por outras palavras, estes são vinhos desafiantes, inesperados e estranhos. Este registo completamente diferente da normalidade é capaz de surpreender positivamente qualquer pessoa, levantar questões pertinentes e até apontar novos horizontes na região onde se inserem. Tudo isto à medida de todas as carteiras e em várias capacidades.

Os vinhos

As escolhas realizadas foram alinhadas devido a alguma característica de produção muito diferenciadora ou arrojada dando origem a vinhos de qualidade.

O Ricardo Garrido e o Márcio Lopes apostaram na primeira edição de uma referência proveniente de uma masseira. Uma forma de agricultura com quase 200 anos e que consiste em fazer uma cova larga e retangular nas dunas da zona de Póvoa de Varzim e Esposende. O vinho obtido apresenta aromas e sabores muito frescos a morango, lima e alguma salinidade envoltos numa cremosidade surpreendente e altamente aprazível. Uma referência com um perfil descontraído, muito fácil de beber e surpreendente.

Este espumante bairradino, produzido por Luís Patrão, resulta da vinificação das castas Bical, Baga e Cercial cujo envelhecimento dos vinhos base foi realizado pelo método solera. Este processo foi iniciado em 2007 e já conta com mais de 10 colheitas no lote base. Um espumante com aromas surpreendentes e que conjuga a garra da juventude com a elegância do longo estágio em garrafa. Este equilíbrio é alcançado, na minha opinião, através do método usado para obter o espumante.

Um vinho do Douro (Baixo Corgo), no qual as uvas foram previamente desengaçadas e a fermentação decorreu com as películas recorrendo a leveduras indígenas, sem adição de sulfuroso, sem controlo de temperatura e com a adição de lúpulo. Posteriormente estagiou seis meses em barricas usadas. Um vinho marcado pelos aromas a lúpulo e pela fruta fresca. O toque mentolado, a leve salinidade e o ligeiro melado completam um “bouquet” extremamente invulgar. O palato revela uma textura vibrante conferida pelos taninos e pela acidez. A leve salinidade e as especiarias completam a apetência gastronómica. Este vinho foi uma grande e boa surpresa que provei com a Liliana Teófilo e com o Fernando Coelho. A não perder, especialmente para quem procura novas e surpreendentes sensações vínicas.

O Luís Pedro Cândido da Silva e o seu amigo Daniel Niepoort mostraram uma faceta singular do Douro. As uvas, da casta Rabigato, foram divididas em duas partes. Uma foi prensada diretamente para barrica. A outra macerou por 12 horas antes da prensagem para inox, onde decantou 24 horas e só depois foi introduzida noutra barrica. Ambas fermentaram espontaneamente, desenvolvendo um manto de flor depois da fermentação alcoólica, que protegeu o vinho durante um ano de estágio em barrica sem qualquer adição de sulfuroso. Nesta referência destacam-se claramente os aromas a fruta verde, a fruta de caroço e a oxidação. As leves especiarias compõem o “bouquet” inesperado. O palato revela fruta cítrica e de caroço muito fresca e uma acidez bem marcada. Pleno de intensidade e personalidade apesar dos 10 graus de álcool.

Miguel Viseu, apesar de ser um jovem enólogo já apresenta um vasto currículo internacional e tem uma visão enológica particular sobre a produção de vinhos. Recentemente criou um projeto vínico pessoal com características igualmente particulares. As uvas foram desengaçadas e estiveram 36 horas em contacto pelicular antes da fermentação, que decorreu em cubas de aço inox e em barricas de castanho sem controle de temperatura. O vinho teve ainda um breve estágio em talha. A ligação dos aromas a fruta, bem marcados, com o perfil vegetal e mineral revela muitas camadas de aromas surpreendentes da casta Loureiro. O palato mostra um vinho intenso, denso e profundo mas simultaneamente contido. A acidez marcada e a estrutura bem presente remete-o para a mesa. Um vinho com um perfil “funky” para beber de forma descontraída.

Joana Santiago e Pedro Ribeiro decidiram juntar as tradições das regiões de Monção e Melgaço e do Alentejo para produzirem algo singular, um Alvarinho de ânfora. Destacam-se os aromas cítricos, minerais e terrosos bem complementados por outros mais vegetais e por um leve toque de mel. O palato mostra fruta cítrica e de caroço muito fresca e uma acidez quase cortante. Excelente para a mesa. Um alvarinho único que qualquer enófilo deveria conhecer.

Boas provas e bom ano de 2021.

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