É nas terras quentes do Baixo Alentejo, bem perto da cidade de Beja, que se encontra a Herdade da Mingorra. Propriedade de enorme beleza, com cerca de 1400 hectares de extensão total, várias bacias hidrográficas e uma fauna diversificada, da qual se destacam as muitas perdizes que por lá proliferam e parecem conviver harmoniosamente com as demais espécies animais e vegetais. A Herdade da Mingorra é realmente uma terra de perdizes. A sua condução está hoje nas mãos da segunda geração, nomeadamente da Sofia e da Maria Uva, que acabam por ser os rostos da empresa. Sendo uma propriedade enorme e de grande beleza, que produz amêndoa, azeite, mais de 1 milhão de garrafas de vinho, distribuídas actualmente por 17 referências, para além de se encontrar já aberta a programas de enoturismo, irá dar certamente lugar a um ou mais artigos meus no futuro.
Contudo, o intuito agora é falar-vos do topo de gama deste projecto vínico e que dá pelo nome de Vinhas da Ira. A Mingorra possuí hoje certa de 200 hectares de vinha, entre as quais se encontram algumas das mais antigas da região. Entre os talhões mais antigos, muitos sofreram re-enxertias aquando a reestruturação das vinhas, para castas mais actuais que se enquadrassem no perfil de vinhos pensados para a nova vaga dos vinhos da Herdade da Mingorra, aproveitando a qualidade dos solos de xisto vermelho e a sua baixa produtividade – à excepção, claro, do talhão 25, de onde se produz este topo de gama – Vinhas da Ira. Este talhão, plantado em solo argilo-calcário e registado como Alfrocheiro, viria a revelar-se único aquando da descoberta de que o Alfrocheiro, efectivamente, não era mais do que uma minoria entre mais de doze castas distintas, muitas delas nunca identificadas. Dentro das identificadas, predominam o Aragonez, o Alicante Bouchet e a Touriga Nacional.
O vinho tem nome de romance e, de facto, há algo de “romântico” na sua génese. Em tempos idos, confrontado com a vontade de outros intervenientes no levantamento ou destruição destas vinhas tão pouco produtivas, Henrique Uva, o titular e mentor deste projecto, tudo fez para que estas vinhas fossem mantidas. Foi a força da sua convicção, o resultado da sua “ira”, que permitiu a existência deste vinho, cujo único defeito, para mim – claro está! – é o facto de não poder ser produzido em maiores quantidades. A vinha não é grande e a sua rentabilidade é obviamente baixa.
Nunca são produzidos mais de 4000 ou 4500 kg de uvas, que apenas em anos considerados com a qualidade necessária para o efeito, dão lugar ao engarrafamento de cerca de 3000 garrafas. A primeira edição deste vinho data de 2004 e o último a sair para o mercado foi o de 2014. As colheitas provadas para este artigo foram as de 2004, 2011 e 2014.
Antes de falar sobre esta prova e estes vinhos, gostaria de deixar aqui umas palavras sobre o enólogo que os faz. Trata-se do Eng. Pedro Hipólito, um tripeiro nascido no magistral ano de 1970, que, ao que parece, se terá “alentejado” para todo o sempre! Talvez mais conhecido por ser o enólogo da Adega do Redondo, a verdade é que o Pedro está com a Mingorra desde o primeiro momento.
Nos últimos anos, tornou-se também responsável por toda a parte agrícola, com maior participação na viticultura naturalmente. Sem ignorar a componente prática e económica da produção de vinhos, a verdade é que o Eng. Pedro Hipólito é essencialmente um homem da ciência e do campo, áreas onde ajuda a crescer todos os projectos em que se envolve. Não lhe peçam é para viver nas luzes da rivalta. O Pedro parece fugir dos holofotes com tanta rapidez como alguns dos seus congéneres os procuram. Esta característica muito low-profile, não faz dele um enólogo muito falado, nem mesmo muito conhecido. Contudo, sempre que penso em enólogos como o Pedro Hipólito, lembro-me imediatamente de umas palavras que me foram ditas há uns anos pelo meu amigo Osvaldo Amado. “Um grande enólogo não se vê pelos luxuosos vinhos de nicho que produz. Gerir umas quantas barricas estará sempre ao alcance de qualquer um. Difícil mesmo é fazer volume e qualidade ao mesmo tempo. É gerir diferentes projectos, alguns milhões de litros de vinho e, ainda assim, conseguir apresentar ao mercado vinhos de grande qualidade.” E isto é o que o Pedro Hipólito faz com todo o mérito. Parabéns meu caro conterrâneo!
Tendo já provado o Vinhas da Ira 2014 (última colheita produzida e a única disponível no mercado) várias vezes e com várias pessoas, isto apesar do vinho só ter saído para o mercado há cerca de 6 meses, tenho sido confrontada com algumas observações que na minha opinião pecam por prematuras. A maioria diz que o vinho está muito fechado, pouco expressivo, muito tânico ou com taninos ainda muito duros. Concordo que existem ainda arestas a limar e que o vinho irá crescer em cave, mas quem diz isso não sabe o que é um Baga clássico da Bairrada, não sabe o que é um Ramisco de Colares e também não saberá o que é um grande Bordéus do Haut-Médoc. Todos estes vinhos precisam de tempo, muito tempo mesmo – para quem gosta de vinhos mais macios! Quem os conhece e sabe apreciar, sabe que só atingirão o seu auge ao fim de algum tempo em garrafa, tempo esse que dependerá da região em particular, das castas e até da colheita em causa.
Mas por acaso nem sequer é o caso deste Vinhas da Ira 2014. Está ainda jovem é certo, mas para quem, como eu, apreciar nervo, robustez e a sensação de taninos bem presentes para harmonizar com um belo prato de carne, terá nele um belíssimo parceiro à mesa. Para além disso, quem o comprar, poderá ficar seguro de que adquiriu um vinho de guarda com vários anos de vida pela frente.
Afinal quais são os factores que determinam ou poderão determinar a longevidade de um vinho? Basicamente são quatro: Acidez, taninos, álcool e açucar. Pois este vinho tem isso tudo, com excepção naturalmente do açucar já que não se trata de uma colheita tardia, nem de um vinho fortificado. Até a questão do PH (a sigla é francesa e significa pouvoir hydrogène) é importante para o envelhecimento de um vinho. Um tinto com um PH na casa dos 3,5, dá-nos algumas garantias de longevidade ou de um bom envelhecimento em garrafa. O álcool cifra-se nos 14% graus, a acidez é de 6,3 g/l e os taninos estão bem presentes e mostram-se em devida forma. Então porquê dizer mal deste vinho?!…
Os vinhos foram provados no dia 12 de Março de 2019. Por engano foi aberta uma garrafa do Vinhas da Ira de 2004. A intenção era abrir um 2009. Por duas razões:
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Em termos cronológicos faria mais sentido comparar 3 colheitas mais próximas – 2009, 2011 e 2014;
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A garrafa de 2004 aberta era a última que possuía e eu ando a tentar seguir o rasto e avaliar a longevidade dos vinhos de Beja. Não só da Mingorra, mas também dos outros produtores.
O facto dos rótulos do 2004 e do 2009 serem iguais (acho que só difere mesmo a cápsula), dos números 4 e 9 serem parecidos e da minha visão ao perto já não ser o que era, determinaram este engano. Como a prova não foi feita em minha casa, já não havia forma de corrigir a situação. Assim, lá fiquei eu com um 2009 para abrir mais tarde e, felizmente, tive a sorte de encontrar uma garrafa do 2004 perdida numa garrafeira perto de mim. Tudo novamente em ordem, portanto!
O PVP aconselhado deste vinho (Vinhas da Ira 2014) é de 25€, sendo normal vê-lo entre os 24€ e os 28€, dependendo da garrafeira. Os rótulos das garrafas foram mudando ao longo tempo, sendo que o meu preferido é o do Vinhas da Ira 2011. Mas isso é uma mera questão de pormenor. Na realidade todos me agradam.
O título deste artigo é um bocadinho ou totalmente antagónico. Ícone desconhecido?! Isso na realidade não existe. Se é ícone ou icónico, é forçosamente conhecido e reconhecido. A minha intensão foi mesmo a de provocar e de criar um frisson. Em primeiro lugar, tem por objectivo chamar à atenção dos leitores que estão perante um excelente vinho e em segundo lugar (e não menos importante), visa chamar à atenção de quem de direito, para passar a olhar para este vinho de outra forma, para lhe passar a conceder o mérito devido e o começar a incluir em tudo o que são provas oficiais sobre – ÍCONES DO ALENTEJO!
Termino este já longo artigo com a minha nota de prova pessoal sobre os 3 vinhos/colheitas provados.
VINHAS DA IRA 2014 (único disponível no mercado)
Mostrando ainda um nariz algo fechado, pouco comunicativo, a verdade é que este field blend revela já notas de frutos vermelhos muito maduros, um toque balsâmico e ainda uns ligeiros fumados, muito suaves, mas que compõem o conjunto final. É um tinto austero, com taninos bem presentes e que provado sem comida até poderá deixar uma secura no final de boca. Para acompanhar um belo prato de caça, já se mostra pronto, fazendo uma maridagem perfeita.
Com tanino de tanta robustez e qualidade, uma belíssima acidez e uma frescura notável para um vinho de Beja, este tinto só poderá auspiciar a uma longa vida em cave. Tem todo o nervo e todo o potencial para isso. Atendendo ao preço e à sua qualidade, considero ser um vinho para se comprar às caixas. Eu já tenho as minhas!
VINHAS DA IRA 2011
Um vinho ímpar de um ano memorável para o país. Com mais de 8 anos de vida, a complexidade deste vinho é já muito evidente. Evoluiu brilhantemente. Consegue combinar concentração e potência, com elegância e sofisticação. Não é fácil um vinho conseguir conciliar todas estas características. Tudo impressiona neste vinho. Tem uma acidez vibrante, um tanino fino, uma frescura elegante, mas sobretudo uma imponência que não deixará ninguém indiferente. Estas serão efectivamente as características mais patentes neste vinho – imponência vs elegância. Em suma, todo o requinte que um grande tinto pode proporcionar.
VINHAS DA IRA 2004
Ainda que aberto sem intenção, a verdade é que este 2004 me deixou muito contente. Eu que ando a tentar perceber a longevidade dos vinhos de Beja, já me tenho deparado com algumas desilusões, mas também com algumas boas surpresas. Este 2004 foi, felizmente, uma dessas alegrias. De cor ainda muito intensa para os anos de vida que possui, obviamente que a púrpura deu lugar a um vermelho rubi mais aberto com rebordos acastanhados. As notas de oxidação no nariz faziam-se sentir de forma muito suave, conferindo complexidade ao conjunto. Muito vivo ainda, não deixava os efeitos do tempo esmagarem a fruta. Os seus aromas primários ainda se faziam sentir, sendo, contudo, as notas balsâmicas e terrosas que imperavam. Tinha força, tinha garra, proporcionou uma prova de muito prazer e deu sinais de ter ainda alguns anos de vida pela frente e em perfeito estado de saúde. Bom ver vinhos assim!
Por último, e uma vez que não chegamos a provar o VINHAS DA IRA 2009, pelas razões que já acima referi, gostaria de informar que provei a colheita de 2009 em 2017 e recordo-me de considerar que o vinho estava num excelente momento de consumo. No entanto, não disponho aqui da nota de prova que fiz na altura para a poder partilhar. Contudo, e porque está disponível no facebook, gostava de partilhar aqui uma foto/artigo, a título de curiosidade, para todos quantos se mostram mais cépticos sobre as valias do Vinhas da Ira, enquanto “ícone” Alentejano.
Luis Sottomayor, enólogo director da Sogrape, homem que tem sobre as suas costas, entre outras coisas, a decisão de declarar um vinho Barca Velha ou não, a uma pergunta colocada pelo Pedro Garcias para o Jornal Público sobre qual o seu vinho alentejano preferido, respondeu, à época – VINHAS DA IRA 2009.
Vale o que vale dirão alguns, mas eu tenho cá para mim que valerá alguma coisa. Deixo-vos então uma foto do texto para o poderem ler.
Cheers!
Olga Cardoso