Em setembro de 1952, Fernando Nicolau de Almeida, tentaria realizar um sonho há muito almejado: fazer um vinho de mesa na Quinta do Vale Meão capaz de rivalizar com o que de melhor se fazia em Bordéus. No entanto, entre o diretor técnico da Ferreirinha e a concretização do seu sonho erguia-se uma barreira quase intransponível no Alto Douro vinhateiro: a canícula.
Depois de ter realizado várias viagens a Bordéus, nos anos quarenta, ficou convencido que tinha encontrado a chave para abrir o futuro dos vinhos tintos de mesa do Douro. A resposta residiu numa tina com um metro de altura por um metro de largura e num carregamento de blocos de gelo trazidos, durante a noite, de uma fábrica conserveira de Matosinhos.
Da paixão pelo vinho de Fernando Nicolau de Almeida surgiu um dos vinhos mais icónicos e míticos do panorama vínico nacional que todos os enófilos, ou simples curiosos, tentam provar.
Wine Bar by Cristal
Ricardo Pereira, proprietário de vários bares na zona do Bairro Novo da cidade da Figueira da Foz, entre eles o Wine Bar Cristal, também não é imune à paixão por vinhos e gastronomia de grande qualidade.
O Wine Bar Cristal tem vindo a assumir-se como um marco incontornável na zona centro do país no tratamento exemplar que dá aos néctares de Baco. Por lá, os vinhos têm temperaturas e copos certos para serem levados à mesa. A cave refrigerada, e à vista dos clientes, alberga dezenas de referências de quase todas as DOC nacionais e algumas estrangeiras prontas a satisfazerem o pedido mais exigente de qualquer enófilo.
A prova
A ideia de realizar esta vertical com as últimas dez colheitas de Barca Velha começou a fermentar depois de ter recebido em herança do seu pai, há vários anos, um enorme espólio com centenas de garrafas de grande qualidade que estavam guardadas há décadas na garrafeira da família.
No entanto, sempre achou que uma prova deste calibre deveria ter lugar apenas com pessoas que lhe atribuíssem o devido valor e importância.
Depois de contabilizar todas as unidades das várias referências existentes na sua garrafeira, verificou que conseguiria apresentar uma prova com as dez últimas colheitas do mítico Barca Velha.
A data estipulada seria 9 de dezembro de 2016, um registo que ficaria para a história do Wine Bar Cristal. Começava, então, a crescer um nervoso miudinho. A responsabilidade era grande e as espectativas ainda maiores. As dele e as dos participantes.
A prova, dividida pelas últimas três décadas de Barca Velha, acompanhada de jantar teve três momentos distintos. O primeiro abrangeu as colheitas de 1981, 1982, 1983 e 1985. Estas foram acompanhadas de uma tábua de queijos, compotas variadas e presunto pata negra. No segundo momento desfilaram as colheitas de 1991, 1995 e 1999 acompanhadas de migas de bacalhau no pão. O terceiro momento mostrou as três últimas criações do Barca Velha: 2000, 2004 e a recente de 2008. Estas foram acompanhadas de javali no forno com puré de maçã.
Os vinhos da década de 80 exibiram-se em grande nível. A cor carmim apresentada por todos eles revelaram bem a idade ostentada. As colheitas de 1981 e 1982 exibiram aromas claros de evolução: cogumelos, caruma e pinho, enquanto as de 1983 e 1985 revelaram claramente fruta vermelha compotada. No geral, os vinhos apresentaram-se bastante frescos, secos, com boa acidez, estruturados e com final longo.
À primeira vista, podem parecer exageradas as quatro declarações de Barca Velha na década de 80. No entanto, existem várias razões que podem explicar esse feito.
No primeiro trimestre de 1979 entra para os quadros da Casa Ferreirinha o primeiro enólogo com formação superior, José Maria Soares Franco. Este rapidamente começaria a formar dupla de sucesso com Nicolau de Almeida para conceberem novos Barca Velha.
Por outro lado, a adega da quinta onde era produzido o vinho também sofreu várias reestruturações: as cubas de inox fizeram a sua estreia substituindo os velhos balseiros e o novo sistema de refrigeração permitiu resolver de forma mais eficaz, do que a velha tina com gelo, o problema da subida da temperatura do mosto durante a fermentação.
Por fim, a vinha que Francisco Olazabal mandou plantar na década de 70 começou a produzir uvas com quantidade e qualidade suficiente para produzirem bons vinhos.
Da década de 90 vieram à mesa três vinhos. A colheita de 1991 mostrou aromas de caruma, muito fresco e com barrica de boa qualidade. A acidez elevada e a secura apresentada ligou muito bem com o prato de migas de bacalhau.
Os Barca Velha de 1995 e de 1999 apresentaram-se, através da fruta compotada e boa estrutura, mais próximos do estilo tradicional duriense. Os vinhos ainda tinham alguns taninos presentes, o que conferiu mais textura à harmonização.
Os vinhos desta década apresentaram um perfil de evolução muito interessante. Por um lado, as características de evolução já se fazem notar, no entanto, as notas de fruta ainda estão claramente presentes. O Douro a brilhar bem alto em todo o seu esplendor.
Nesta década foi José Maria Soares Franco, com Luís Sottomayor por perto, que assumiu a responsabilidade enológica após a reforma de Fernando Nicolau de Almeida, em 1987.
Nos anos 90, o país vinhateiro foi alvo de profundas renovações e revoluções. Os processos enológicos sofreram igualmente uma reforma. A introdução de novas tecnologias na adega podem explicar algumas das diferenças entre os vinhos desta década e os da anterior.
Com o último prato, javali no forno com puré de maçã, foram servidas as colheitas de 2000, 2004 e recentemente lançada 2008.
As últimas colheitas são bastante diferentes entre si. A colheita de 2000 apresentou uma faceta mais vegetal enquanto a de 2004 mais químico. Ainda assim, os vinhos revelaram boa frescura, fruta compotada, boa estrutura e barrica de grande qualidade.
O Barca Velha de 2008 está ainda um pouco jovem. A fruta preta macerada, o cacau e a madeira de boa qualidade estão ainda muito presentes. No entanto, apresenta uma boa estrutura e um final muito longo. Os taninos ainda vivos pedem gastronomia à altura do vinho. Foi o que aconteceu.
É interessante verificar que a partir de 2007, com a saída de Soares Franco, Luís Sottomayor toma as rédeas do Barca Velha. Um novo enólogo surge para assegurar um futuro que se augura brilhante.
Vinhos provados:
Barca Velha 1981 – 18
Barca Velha 1982 – 17,5
Barca Velha 1983 – 18,5
Barca Velha 1985 – 18,5
Barca Velha 1991 – 19
Barca Velha 1995 – 18
Barca Velha 1999 – 18
Barca Velha 2000 – 18
Barca Velha 2004 – 18,5
Barca Velha 2008 – 19
Artigo inicialmente publicado na revista Paixão pelo Vinho nº 68 (Notas atribuídas em conjunto com Maria Helena Duarte)
Gostei muito da escolha e dos comentários
Boa continuação
Obrigado. Ainda bem que gostaste. Abraço.
Uma noite inesquecível Paulo!
Para além da prova e dos grandes vinhos, á mesa tivemos um excelente painel: jornalistas, consumidores finais e enólogos.
E na minha opinião a interatividade foi enorme e de grande valia onde podemos provar, degustar e discutir estes vinhos míticos com todos os ângulos e perspectivas.
Abraço
Fazia já outra igual!!
Sem dúvida. Foi uma noite excelente, talvez um dos pontos altos do Winebar Cristal desse ano. Grande abraço.