No final do século XVII, os vinhos do Porto foram alvo de um crescente interesse britânico, devido às desavenças entre os monarcas franceses e britânicos, o que permitiu uma expansão económica na região e, em especial, na cidade do Porto. Este desenvolvimento económico trouxe alguma abundância às suas populações e fez com que algumas famílias começassem a aproximar-se do Porto com a construção de residências e armazéns.
É na sequência desta crescente migração que, em meados do século XVII, os Pinto da Cunha chegaram ao Porto provenientes de Provesende ou de Vila Real. Do casamento de Leonardo da Cunha Godinho com Thomazia Josepha de Faria nasceram, entre outros, os filhos José Pinto da Cunha Pimentel e Pantaleão da Cunha Faria, em 1713 e 1723, respetivamente.
Terá sido o primeiro que mandou construir a Casa do Cais Novo, em 1750, mas logo surgiu a necessidade de erigir um armazém no qual pudessem ser guardadas as centenas de pipas de vinho fino, nome de então pelo qual era conhecido o vinho do Porto, que anualmente eram transportadas para a cidade provenientes das inúmeras propriedades que detinham na recente demarcada região do Alto Douro.
A importância dos Armazéns da Casa do Cais Novo
Os armazéns da Casa do Cais Novo começaram a ser construídos no último quarto do século XVIII a mando de José Pinto da Cunha Godinho Saavedra, filho menor de José Pinto da Cunha Pimentel, que tinha por tutor o tio Pantaleão da Cunha Faria.
Quando terminou a construção, em 1798, o majestoso edifício era composto por três pisos. O seu interior era constituído por duas naves, divididas por fortes pilares, sobre os quais assentavam abóbadas. Este era o maior armazém privado que existia na cidade do Porto de então.
Com o passar dos anos estes armazéns foram alvo de uma extensiva utilização devido, por um lado, à proximidade da Alfândega do Porto que estava sediada na atual Casa do Infante. Por outro lado, a Casa do Cais Novo detinha, como o próprio nome indica, um cais próprio no qual se podiam embarcar e desembarcar diferentes cargas em navios que tinham como destino final o montante do rio Douro ou outros mais longínquos no Oceano Atlântico. Por outro lado ainda, o comércio do vinho do Porto conheceu, ao longo do séculos XVIII e XIX, um enorme incremento. Por fim, e mais relevante, a família que detinha a Casa do Cais Novo e respetivos armazéns, teve um grande envolvimento na direção da poderosíssima Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro.
Na verdade, José Pinto da Cunha Pimentel tornou-se vereador da Câmara Municipal do Porto, mas um dos cargos mais marcantes que desempenhou terá sido o de deputado da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro na mesa fundadora.
O seu irmão, Pantaleão da Cunha Faria, também desempenhou as mesmas funções, posteriormente.
Talvez devido a esse facto, como a Companhia não possuía um local próprio de armazenamento, a família cedeu parte dos seus armazéns para uso dela. Mais tarde, em 1822, os armazéns da Casa dos Cais Novo tornaram-se no principal depósito da Alfândega do Porto passando, então, a ser conhecidos como a Alfândega de Massarelos.
Os armazéns desempenharam um papel central na atuação revolucionária da Companhia e por lá permaneceram até 1872, ano da passagem dos seus serviços para Edifício da Alfândega Nova.
Transformações…Simplesmente revolucionárias
Depois da transferência para as novas instalações, os Armazéns do Cais Novo retornaram para a posse e administração dos proprietários iniciais mas os edifícios sofreram um longo processo de declínio ao longo dos anos. Uma realidade que contrastou com o mundo vínico português.
O final do milénio anterior apresentou um fulgor quase incontrolável de inovações e desenvolvimentos inéditos. Os anos oitenta ficaram marcados pela dicotomia das adegas cooperativas e dos produtores-engarrafadores. Por outro lado, a década de noventa ficou marcada pelo aparecimento e desenvolvimento dos vinhos de quinta, da proliferação dos enólogos e do uso de uma miríade de produtos enológicos. Por outro lado ainda, o início do novo milénio trouxe inúmeras empresas que apostaram fortemente na exportação dos seus produtos. Uma das marcas desta década é o regresso ou reconversão de cada vez mais produtores nacionais e internacionais a práticas mais amigas do ambiente.
No decurso destas transformações, o piso superior do armazém tem vindo a receber um evento vínico, organizado pela família Rosé, no qual se reúnem produtores independentes e alternativos de vinho cujas práticas estão em linha com essas marcas, o “Simplemente…Vinho?”.
Este evento vínico teve a sétima edição nos dias 22 e 23 de fevereiro e tem vindo a afirmar-se como uma mostra vanguardista do que há de mais genuíno e alternativo, em especial, no panorama vínico da península Ibérica.
No que concerne ao retângulo plantado à beira mar ao qual chamamos Portugal, este evento tem dado a conhecer alguns dos mais interessantes pequenos produtores que recorrem a um mínimo de agricultura biológica na vinha, renegam quaisquer aditivos, não usam auxiliares de processamento ou equipamentos pesados de manipulação na adega, com exceção da filtração grosseira e toleram um uso parcimonioso de sulfitos.
Disso mesmo são exemplos: António Madeira, no Dão; Pedro Marques que detém a marca Vale da Capucha e está sediado na região de Lisboa; Vasco Croft com a já prestigiada marca Aphros na região dos Vinhos Verdes; António Marques da Cruz que, nos arredores de Leiria, trabalha a marca Quinta da Serradinha e o produtor Fernando Paiva que tem usado novas e abordagens na vinha e na adega da Quinta da Palmirinha
Neste contexto, o “Simplesmente…Vinho?” tem sido responsável por restituir aos Armazéns do Cais Novo o brilho e importância que perderam com o passar dos anos.
Os enófilos, os produtores e, especialmente, os descendentes da família Pinto da Cunha Saavedra agradecem o regresso do desempenho de um papel fundamental dos Armazéns do Cais Novo no panorama vínico nacional.
Uma versão mais curta deste artigo foi publicada na revista Paixão pelo Vinho nº 74.