O verão de 2010 foi tórrido. As vagas de calor sucederam-se inapelavelmente transformando o nosso país num verdadeiro caldeirão ao lume. Ainda assim, a canícula não demoveu a vontade quase férrea do jornalista vínico Estado-Unidense, Paul White, de provar os inúmeros vinhos apresentados nas diferentes Quintas do Dão.
No final do périplo afirmou que a região era uma das mais interessantes do mundo pois apresentava muitas castas ainda desconhecidas do consumidor mundial. Este facto levou-o a apelidar o Dão como a Arca de Noé das castas.
A alusão à enorme variedade de castas desta região vitícola não passou despercebida à comunicação social que a difundiu amplamente em diferentes suportes.
Um grande potencial…
Curiosamente, se a visita fosse a outra qualquer região vínica portuguesa não restariam dúvidas que as conclusões seriam quase idênticas. Portugal apresenta um dos maiores parques do mundo de castas autóctones, com cerca de 250 exemplares distintos.
Mais surpreendente ainda é que o número pode aumentar dramaticamente em breve. António Graça, diretor do departamento de investigação e desenvolvimento da Sogrape, ao participar num programa “on-line“, referiu que várias instituições nacionais, compostas por universidades e organizações não governamentais, formaram um grupo de investigação para analisarem cerca de 6000 plantas e que seria esperado um aumento de 100 novas castas autóctones!!
Por um lado, esta enorme diversidade de castas, quase exclusivas de Portugal, dão origem a vinhos únicos e diferenciadores da produção dos restantes países da Europa e do resto do mundo, constituindo uma enorme vantagem competitiva para o sector vitivinícola nacional.
Por outro lado, o parque de castas autóctones pode encerrar uma das chaves para responder ao desafio das alterações climáticas. Recentemente a região de Bordéus importou 6 castas estrangeiras, aprovadas pelo regulador francês, com o objetivo de reverter as alterações climáticas, entre elas estava a Touriga Nacional.
…quase desaproveitado
Com todo este potencial seria de esperar que os diferentes atores do setor vínico nacional apostassem fortemente nas castas autóctones. No entanto, a realidade crua dos números não reflete essa realidade.
A mais completa publicação sobre o setor vinícola português, editada pelo Instituto da Vinha e do Vinho, mostra claramente que apenas 32 castas, com representavidade igual ou superior a 1%, foram usadas na produção de vinho.
Analisando pormenorizadamente os dados podemos constatar que a casta mais plantada no nosso país, a Tinta Roriz, correspondendo a 10% do total, não é originária de Portugal e, pelo menos, 6 castas tintas são provenientes de outros países, o que reduz o uso das nacionais para 26.
Mesmo supondo que o uso das castas autóctones poderá chegar à meia centena, uma vez que os dados do documento só corresponderão a 83% da área total de vinha e a sua instalação encontrar-se-á muito fragmentada, só estaríamos a usar 20% do parque atualmente conhecido.
Através deste simples exercício percebemos que existe um claro afunilamento e especialização no uso das castas autóctones e que, muito provavelmente, se está a desperdiçar um enorme potencial vínico, inúmeras vantagens competitivas face a outros países e provavelmente a hipotecar um futuro dependente das alterações climáticas.
Um puzzle sem fim à vista?
Uma vez na posse do esboço do quadro geral importa formular uma pergunta: Quais serão as razões para tão reduzido uso do parque das castas autóctones portuguesas?
A resposta talvez esteja ligada a uma multiplicidade de fatores correlacionados. Em primeiro lugar, as dificuldades podem estar relacionadas com a aquisição do material vegetativo. Quantos viveiristas vendem a casta Amor-Não-Me-Deixes ou a Rabo de Lobo ou ainda a Promissão em quantidades suficientes para plantar uma vinha economicamente viável?
Em boa verdade, as casas comerciais não possuem todas as castas autóctones em quantidade suficiente para abastecer o mercado.
Ainda assim imaginemos que um produtor consegue adquirir um número economicamente interessante de varas da casta Promissão, por exemplo, e passados alguns anos se prepara para a vindima. Como não existe investigação enológica sobre a casta, muito provavelmente passará algumas noites em claro a pensar no momento certo para a vindima, no carrossel da fermentação e nas diferentes variáveis do resultado final.
Mesmo que todo este processo termine num sucesso à primeira tentativa, algo que é pouco comum, ainda terá uma nova montanha de dificuldades, relacionadas com a colocação no mercado do novo produto, para ultrapassar.
Ainda podemos ir mais longe e pensar nas contrariedades da internacionalização desta nova referência. Não podemos olvidar que as 10 castas mais plantadas do mundo (Cabernet Sauvignon, Merlot, Airen, Tempranillo, Chardonnay, Syrah, Garnacha, Sauvignon Blanc, Pinot Noir e Trebbiano), encontram-se implantadas em 1 965 000 hectares, dispersos por praticamente todas as regiões vinhateiras do mundo, e são responsáveis por mais de 40% das vendas planetárias. O mercado mundial, muito provavelmente, nem se aperceberia desta nova casta.
Muito embora pareça uma tarefa hercúlea e digna de Sísifo existem no mercado vários exemplos de sucesso, para os consumidores de nicho, com castas autóctones praticamente desconhecidas. Basta para tal pensar no trabalho realizado, por exemplo, pelos produtores Real Companhia Velha e Vinilourenço com as castas Samarrinho e Donzelinho, entre outras, ou ainda com a aposta de Luís Pato e da Sogrape em torno da casta Cercialinho.
Uma estratégia igualmente usada pelos produtores, visando uma mais fácil penetração nos mercados internacionais, é a aposta em vinhos de lote usando castas autóctones, como a Arinto, Touriga Nacional ou Baga, e castas internacionais bem conhecidas e amplamente estabelecidas, como é o exemplo da Chardonnay, Pinot Noir, Tempranilho e Cabernet Sauvignon.
Em suma, percebemos a necessidade inicial do afunilamento e especialização em torno de algumas castas. O nosso país apresenta um orgulhoso e rico parque de castas autóctones que poderá, a médio ou longo prazo, proporcionar muitas vantagens competitivas. No entanto, o caminho da experimentação ainda se encontra quase no início e muito ainda haverá a fazer antes de partir para a conquista dos mercados nacionais e internacionais.
Talvez seja um projeto interdisciplinar congregador de instituições estatais, particulares e não governamentais para várias gerações. Vamos a ele!!