Nos primeiros anos deste novo milénio dois dos mais interessantes investigadores sociais da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Steve Stoer e António Magalhães, dividiam os seu tempo entre a docência e a investigação sobre diversas temáticas. Um dos temas em que se tornaram bastante profícuos e objeto de interesse intelectual terá sido a brilhante análise realizada sobre o pensamento e a ação que interage com as diferenças.
Os autores concluíram, com algum brilhantismo, que o mundo em que generosamente queremos construir para os outros é precisamente o mesmo em que nós próprios queremos ser incluídos. Assim, lutar pela inclusão é lutar pela afirmação da diferença própria e não para um mundo próprio, onde somos nós que criamos as diferenças e dentro das nossas próprias diferenças somos “desiguais”.
No mundo dos vinhos mais ou menos naturais é possível traçar um paralelismo com as premissas dos professores Magalhães e Stoer.
A ascensão e veneração da “Parkerização” do mundo dos vinhos
O ano de 1982 marca claramente o início de uma época vínica a nível mundial, a era Robert Parker. O sucesso alcançado pelo crítico de vinhos alicerçou-se na capacidade, quase lendária, de fazer vender e, acima de tudo, de aumentar o preço dos vinhos bem conotados pela sua métrica avaliativa. Parker interpretou inapelavelmente os critérios que definiam a excelência de um vinho tinto bordalês e, por inerência, do resto do mundo: cor carregada, grande concentração, muito frutado, viscoso e com álcool elevado.
Um vinho que cumprisse todos estes requisitos corria sérios riscos de obter uma nota bastante elevada na publicação de Parker. Este facto seria o bastante para catapultar imediatamente o produtor para o estrelato vínico mundial e consequente implicação económica extremamente positiva.
Esta situação agudizou-se ainda mais após a colheita de 1995. Quando a “Union des Grand Crus de Bordeaux” decretou que as provas de barrica não poderiam ser realizadas antes do início de abril foi aberta uma exceção para que “Le Grand Bob” o pudesse fazer na última semana de março, pois alguns produtores só lançariam as suas colheitas para o mercado após a publicação das notas de Robert Parker.
Um fator determinante na ascenção da “Parkerização” dos vinhos terá sido o desenvolvimento da tecnologia enológica. No início da década de 90, os enólogos disponham de um manancial tecnológico que lhes permitiam controlar e produzir vinhos de acordo com as suas necessidades e gostos mais aprazíveis ao palato do consumidor.
Os enólogos disponham, por um lado, de leveduras, taninos, pigmentos, ácidos e aduelas que forneciam determinados sabores e características aos vinhos. Por outro lado disponham de maquinarias que lhes permitiam realizar osmoses inversas, micro-oxigenações, entre outros procedimentos.
No final da década de 90 surgiram “produtores de garagem” que lançavam vinhos, ultra-concentrados, super-extraídos e com muita tosta de barrica, em quantidades muito limitadas que foram catapultados para o estrelato devido às altas pontuações de Parker. Muito provavelmente estes nunca teriam surgido sem as notas do crítico Estado-Unidense.
A ascenção dos “produtores de garagem” revelou uma realidade até antes nunca conhecida. Para fazer um “grande vinho” não era preciso tornar-se num “vigneron”, ou seja, não precisava de um pedaço de terreno com uma determinada exposição solar e características únicas para produzir boas uvas e excelentes vinhos. Para tal bastaria ambição, visão, audácia, dinheiro e, acima de tudo, tecnologia. Uma espécie de “american dream” à francesa à distância.
Muito rapidamente, e por todo o mundo, começaram a chegar ao palato de Parker, e ao consumidor final, muitos vinhos com o perfil que gostava e distinguia. A “Parkerização” dos vinhos tinha chegado.
À procura do “terroir” perdido
Este movimento em torno de um determinado perfil visando retorno financeiro foi rejeitado por alguns produtores tendo por base o argumento do afastamento do perfil tradicional e original da proveniência dos vinhos.
No final da década de 80, um pequeno grupo de produtores em França começou por apresentar vinhos muito frescos, com pouco álcool, alta acidez, engarrafados em pequenas quantidades e com alguns defeitos percetíveis.
Estes vinhos, muitas vezes denominados “selvagens” e “vivos” devido ao uso de leveduras indígenas e baixo sulfuroso, eram a resposta à crescente homogeneidade vínica advindo do sistema de pontuação de Robert Parker e dos avanços tecnológicos.
Inicialmente, o movimento cingiu-se a alguns produtores de “Boujolais” mas rapidamente outros se seguiram como os casos de Marcel Lapierre, Jean Foillard, Guy Breton e Jean-Paul Thévenet. No início do novo milénio vários produtores do Loire, como Guion, Chaussard e Puizelat juntam-se ao movimento dos vinhos naturais tornando-o praticamente imparável em todo o globo.
A reconfiguração do mundo dos vinhos e o bazar mundial
O “movimento dos vinhos naturais” já deu origem a milhões de palavras escritas e faladas a favor e em seu detrimento mas mais importante do que esgrimir argumentos é, na minha opinião, perceber a reconfiguração do mundo dos vinhos em curso. E é neste ponto que Magalhães e Stoer podem ajudar. As suas premissas sobre as diferenças também podem ser aplicadas neste contexto.
Em suma, os produtores dos vinhos ditos naturais, aqui entendido com um conceito lato, não se reconheceram na tentativa de unificação e na narrativa vínica de Robert Parker e deixaram de aceitar passivamente um discurso que os diminuía e constrangia. Na verdade, os produtores dos vinhos ditos naturais assumiram-se como sujeitos da sua própria enunciação e reclamaram uma voz própria no mundo dos vinhos baseada na sua própria identidade, que pode assumir uma ou várias vertentes (uso de leveduras indígenas, falta de controle de temperatura, uvas cultivadas em modo biológico ou biodinâmico, entre muitas outras).
Esta forma de produzir vinho globalizou-se de tal forma que se perfilou perante a anterior narrativa “Parkeriana” de forma antagónica e incomensurável. No entanto, as duas visões são peças relevantes do património vínico mundial e talvez seja do ponto de vista cultural que devam dialogar.
Curiosamente, cada uma das perspetivas tem para oferecer o que a outra não terá, o que remete para uma construção e uma visão holística do mundo dos vinhos.
Neste sentido podíamos usar a ideia do bazar como metáfora para iniciar o diálogo entre as duas narrativas. Agora entendida como a forma de encontro de diferentes ideias e conceções vínicas, em que cada uma assumiria que a própria diferença reside nela própria e não numa relação de subalternidade.
Tenho a certeza que Stoer e Magalhães nunca pensaram que as suas ideias podiam ser aplicadas desta forma mas, muito provavelmente, os diferentes produtores de vinho e o consumidor também não.
Fontes:
– Stoer, Stephan; Magalhães, António (2009), A Europa como um bazar. Contributo para a análise da reconfiguração do Estado-nação no contexto Europeu e das novas formas de “viver em conjunto” In Revista Lusófona de Educação, nº14, Lisboa
– https://punchdrink.com/articles/natural-wines-new-frontiers-andalucia-spain-hokkaido-japan/?fbclid=IwAR2CTdkqVZdA-Ff5WMTvfqVEXGjdFyFjJPRs533Ny5n7AhPU61mYpN9e_YM (março de 2020)
– https://www.nytimes.com/2001/08/26/business/business-for-better-or-worse-winemakers-go-high-tech.html?searchResultPosition=6 (março de 2020)
– https://www.eater.com/drinks/2016/5/20/11713332/natural-wine-france-sulfite-organic-eastern-europe (março de 2020)
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