A história vínica portuguesa dos últimos cinquenta anos mais parece uma volta na montanha russa. Os momentos altos de emoção e euforia foram quase sempre precedidos ou seguidos por outros mais dececionantes e amargos.
Atualmente vivemos tempos de chumbo que nos manietam e entorpecem o corpo, no entanto, anteriormente, o mundo vínico nacional viveu um período de enorme euforia e desenvolvimento que pode ser articulado em fases distintas.
A Fase do Estado Novo
O sistema corporativo instalado em 1933 e posterior criação da Junta Nacional do Vinho (JNV) em 1937 introduziu profundas reestruturações no sector vitivinícola. Este organismo vertical coordenava todo o sector incluindo a produção e o comércio de vinho.
Nessa fase destacaram-se as ações que visaram a criação de uma verdadeira rede nacional de adegas cooperativas, a regularização do mercado e estabilização dos preços, sendo esta última a causadora de maior impacto ao longo da sua existência.
No entanto, a JNV não equilibrou a oferta e a procura e o país continuou a produzir muito volume de vinho mas, geralmente, de fraca qualidade. O prometido e necessário condicionamento da plantação, bem como a reestruturação da vinha não obtiveram os efeitos práticos desejados. Estes fatores conjugados não permitiram a abertura de novos mercados nem a concorrência com outros países melhor adaptados aos mercados abertos.
Se a criação da JNV marca o início da fase do Estado Novo, a entrada de Portugal na, anteriormente denominada, Comunidade Económica Europeia carimba o final da mesma e, simultaneamente, inaugura a fase seguinte.
A Fase Europeia
Este período permitiu o desenvolvimento de uma verdadeira transformação no panorama vínico Português devido, essencialmente, a três acontecimentos interligados: a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), a inovação vitivinícola e o aprofundamento do “Movimento das Quintas”.
A entrada oficial de Portugal na CEE ocasionou uma enorme torrente de fundos comunitários que foram usados para revolucionar a viticultura, um pouco por todo o país.
O Alentejo reconverteu e ampliou muitos hectares de vinha e construiu múltiplas adegas. No Douro o “Projecto de Desenvolvimento Rural Integrado de Trás-os-Montes” (PDRITM), iniciado nos anos 80 e expandido na década seguinte, recuperou os antigos mortórios e, em simultâneo, permitiu instalar ou replantar mais de 4700 hectares.
A inovação vitivinícola conheceu muitas facetas que ocorreram um pouco por todo o país. Nesta fase a ampelografia revelou muitos avanços determinantes ao nível da caracterização e identificação das castas e da certificação de plantas produzidas em viveiro.
Um fator de consolidação do setor foi o desenvolvimento da profissão de enólogo e de enólogo-consultor, bem como o surgimento de inúmeros produtos enológicos.
Estas inovações combinadas permitiram uma enorme evolução na tecnologia de vinificação, na seleção de castas de melhor potencial enológico e na melhoria das técnicas vitícolas e enológicas.
Durante esta fase também se assistiu ao incremento de um fenómeno denominado por “vinhos de Quinta”. Ao longo da década de 90 foram lançadas inúmeras marcas que ostentavam o nome “Quinta” e que hoje são autenticas bandeiras das regiões onde se inserem e de Portugal: Quinta da Gaivosa, Quinta do Crasto, Quinta do Mouro, Quinta do Vale Dona Maria, Quinta do Vale Meão, Quinta do Vallado, entre outras.
O desenvolvimento comercial também foi evidente. Durante esta fase o vinho deixa de ser maioritariamente vendido às pipas ou engarrafonado à porta das adegas para entrar nas portas do comércio através de distribuidoras criadas para esse efeito.
Também foi durante esta fase que se desenvolveu e um corpo de jornalistas que criticavam as diferentes referências, primeiro em publicações generalistas e depois especializadas.
Esta fase inaugura um período verdadeiramente de ouro e absolutamente entusiasmante do setor vínico nacional. Com o enorme desenvolvimento do setor foi com naturalidade que, no dealbar do novo milénio, os produtores começaram a colher frutos dos enormes investimentos realizados.
A Fase do Novo Milénio
O início do novo milénio foi igualmente marcado pelo enorme dinamismo do setor vínico. As marcas e referências criadas em todas as denominações de origem tiveram um aumento quase explosivo e as vendas bateram recordes anuais.
O setor do vinho do Porto, tradicionalmente conservador e estático, continuou a mostrar-se muito ativo, as fusões entre companhias e a compra de quintas no Douro foram constantes. Muitas empresas que apenas produziam vinho do Porto começaram a lançar para o mercado vinho de mesa.
As novas plantações continuam a fazer-se sentir um pouco por todo o país e as castas do novo mundo também. Curiosamente, o teor alcoólico das diferentes colheitas também aumentou. Uns culparam o aquecimento global mas a influência mundial de Robert Parker talvez não seja alheia. Talvez também por isso, a “identidade” de algumas regiões tenha começado a mudar mas a vontade de alguns produtores para regressarem a um passado mais “biológico” e menos interventivo também se fez sentir.
Foi também neste período que Portugal começou a esbater a ideia muito arreigada de “país de tintos”. Na verdade os vinhos brancos, fruto das inovações enológicas e vitícolas, começaram a rivalizar seriamente com as referências tintas.
Muito embora, as transformações na vinha e na adega continuassem a desenvolver-se, a verdadeira revolução desta fase foi a promoção externa dos vinhos portugueses nos mercados internacionais. As grandes feiras mundiais foram sucessivamente trabalhadas tendo em vista a abertura de novas oportunidades e consumidores. Muitos produtores recorreram a exportadores nacionais ou a importadores dos países de destino para consolidar as suas vendas e prestígio.
Uma das particularidades deste fase foi a concentração de sinergias de vários produtores para melhor se promoverem nos diferentes mercados. Todos se recordarão que os “Douro Boys” ganharam um prémio europeu de internacionalização.
O corolário de todos os esforços surgiu com o anúncio de três referências Portuguesas nos melhores do ano na revista “Wine Spectator” . Viviam-se tempos memoráveis.
Até aqui viveram-se tempos deveras emocionantes. A montanha russa mostrou um trilho vertiginoso, muitos “loopings” e parafusos intermináveis rumo a um estrelato que parecia não ter fim. Mas teve ou pelo menos está em suspenso.
A Fase Digital
No final de 2019, a cidade de Wuhan foi palco da emergência de um novo coronavírus causador de pneumonias. Neste momento, o vírus está disseminado numa vasta área geográfica que abrange todos os continentes à exceção da Antártida. Todos os países apresentam medidas muito restritivas na mobilidade dos cidadãos e no desenvolvimento da economia. Estas ações também tiveram um sério impacto no mundo global dos vinhos.
Um setor gravemente atingido em todo o mundo foi o canal HORECA. Só na cidade de Nova Iorque existem cerca de 26 000 restaurantes que encerraram ou estão em risco de encerramento. Em Portugal o setor também passa por graves dificuldades, até meados do mês de março mais de 13 000 estavam apenas em regime de “take away” e os números não param de aumentar. O fecho deste setor é extremamente gravoso para muitos produtores, pois a maioria depende dele para escoar os vinhos.
O setor da distribuição também está estagnado. Muitos estão encerrados ou funcionam severamente limitados reportando quebras superiores a mais de 95%, o que origina avultadas perdas para todos os operadores diretos e indiretos do setor do vinho.
Como se não bastasse, nos últimos tempos todos os eventos vínicos mundiais foram cancelados ou adiados devido ao risco de transmissão do vírus.
Conjugando todos os cenários, parece que se está a viver a tempestade perfeita para destruir um setor que levou muitos anos a construir. A situação é tão grave que algumas personalidades, como Peter Symington e Pedro Torres, já a compararam àquelas vividas pelos seus familiares em tempos de guerra.
Uma das formas encontradas para mitigar estes acontecimentos tem sido a migração para o mundo digital e para as soluções das redes sociais. Por um lado, foram publicadas inúmeras listas exaustivas de distribuidores, garrafeiras e restaurantes que vendem vinhos através das plataformas digitais. A adesão é de tal forma grande que, em alguns países, as vendas aumentaram em quase 30% quando comparadas com anos anteriores.
Por outro lado, crescem as feiras de vinhos digitais, como por exemplo a “Portugal Wine Week”, levada a cabo pelo “Addega” ou o “Mercado de Vinhos Digital” criada pela Tintocão.com. Uma forma diferente e original de comunicar as diferentes referências vínicas.
A crítica de vinhos, mais ou menos instituída, também tem vindo a aderir ao digital de forma crescente. As principais revistas do setor, blogues, escanções e outros já encontraram formas mais ou menos originais de comunicar com o público através das redes sociais “Facebook” e “Instagram”.
Os produtores também desenvolveram algumas estratégias pouco usadas no nosso país. Alguns estão a aderir, de forma massiva, à venda direta de vinhos. As ofertas são múltiplas e crescem diariamente. Curiosamente, nos Estados Unidos da América é uma opção cada vez mais usada, muito embora apenas represente cerca de 10% do total de vendas, o volume ascende a mais de 6000 milhões de caixas, apenas no último ano.
Face a estes desenvolvimentos, a questão que se deve colocar é: será que estas tendências vieram para ficar, ou passarão com um espirro ?
Fontes:
– Afonso, J; Lopes, L (2014), A revolução do vinho in Revista de Vinhos nº 301, Cascais, Dezembro de 2014.
– Magalhães, Nuno (2007), Restruturação vitícola no Norte do país in Böhm, Jorge, (Coor), (2007), Portugal Vitícola: O grande livro das castas, Chaves Ferreira Publicações, Lisboa.
– Martins, J. P, (2016), Histórias com vinho & outros condimentos, Oficina do Livro, Alfragide.
– Pereira, M (2007), Acção e Património da Junta Nacional do Vinho (1937-1986), dissertação de mestrado não publicado.
– Portela, J; Rebelo, V. (1997), O PDRITM na RDD: contribuição para a avaliação da sua execução e dos seus efeitos imediatos in Douro – Estudos & Documentos Vol. 1(3), 1997 (2º) 159-182.
– https://cluboenologique.com/story/this-is-as-serious-as-the-war-winemakers-worldwide-face-the-crisis-with-resolve (28/3/2020)
– https://www.nytimes.com/2020/03/24/opinion/coronavirus-restaurants-danny-meyer.html (25/3/2020)
– https://www.nytimes.com/2020/03/26/opinion/restaurants-covid-amanda-cohen.html (28/3/2020)
– https://www.publico.pt/interactivo/portugal-meio-gas-que-mudou-pais-suspenso (20/3/2020)
– https://www.publico.pt/2020/03/14/fugas/noticia/coronavirus-perto-200-restaurantes-fecham-portas-chefs-pedem-apoios-1907781 (14/3/2020)
– https://www.publico.pt/2020/03/20/fugas/noticia/internet-nova-casa-vinhos-portugal-provas-cursos-visitas-virtuais-1908593 (20/3/2020)
–https://www.vidaeconomica.pt/agrovida (7/4/2020)
– https://wineindustryadvisor.com/2020/03/25/pandemic-alcohol-stock-up-skews-toward-wine (25/3/2020)
Penso que é uma nova tendência a explorar. O final da pandemia poderá fazer voltar ao modo de comercialização tradicional, em loja, mas mais que o comércio digital parece-me que a comunicação digital que está neste momento em franca expansão, com provas gravadas no YouTube ou sessões em directo no Instagram, que permitem assistir sem estar lá, são novos mundos que se abrem para o consumidor aprender e explorar. Falta o contacto directo e a prova no local, mas em compensação é muito mais fácil passar a mensagem para muito mais interessados.
Vou seguir com atenção este novo caminho, que me interessa verdadeiramente.
Obrigado pelo teu comentário.
Eu também acho que vieram para ficar mas não para substituir.
Voltarei ao tema quando houver novos desenvolvimentos.
Grande abraço.