Vinhos de Portugal: um guia para a descoberta e acompanhamento do mundo vínico Português – Os anos 90 (1ª parte)

Mind the Glass

No dia 13 de janeiro de 1989 foi publicada a crónica “Não vá queixar-se à Deco”, numa coluna intitulada Tribuna do Enófilo, no jornal “O Jornal”. Esta peça jornalística foi a “primeira colheita” de uma longa carreira do mais reconhecido jornalista e crítico de vinhos Português, João Paulo Martins.

O autor apresentou duas sugestões. Em primeiro lugar sugeria a prova do vinho Tinto Velho da Quinta do Poço do Lobo produzido pelas Caves S. João. Em segundo lugar propôs um acordo, com o vendedor de uma garrafa com uma idade respeitável, que consistia na troca por outra se a primeira não estivesse em boas condições para ser bebida.

Estas sugestões foram um bom augúrio para o futuro que se acercava e que consistiu na publicação anual de um guia de vinhos.

A importância do contexto no guia durante a década de 90

Um dos aspetos mais importantes, a considerar neste guia, encontra-se relacionado com o contexto em que se insere, ou seja, o início da publicação coincide com um momento fulcral na mudança do panorama vitivinícola nacional, acompanhando-o, desde então, até à atualidade.

Durante os anos da vigência do Estado Novo, a organização responsável pela organização do setor era a Junta Nacional do Vinho. Quando ocorria um excesso de produção este organismo intervinha no mercado de duas formas. Em primeiro lugar fazia a retirada e guarda dos excessos de produção através da compra de vinhos a preços médios, para os lançar posteriormente no mercado em anos de colheitas mais fracas. Por outro lado, o Estado assegurava a destilação das produções por razões de qualidade ou quantidade (garantia do bom fim).

Desta forma, o principal objetivo do produtor concentrava-se na produção de grandes quantidades de vinho e menos na qualidade do mesmo. Esta forma de orientação originou graves distorções de mercado que seriam grandemente aprofundadas aquando da independência das antigas colónias portuguesas.

A situação vigente conheceu uma grande transformação especialmente após a adesão oficial de Portugal à, então ainda denominada, Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, e pela revogação da “garantia do bom fim” na década de 90.

Estas transformações, iniciadas na década de 80 mas muito aprofundadas na década seguinte, permitiram o desenvolvimento de uma verdadeira “década de ouro” no panorama vínico Português devido, essencialmente, a três acontecimentos interligados: a adesão de Portugal à CEE, a inovação vitivinícola e o aprofundamento do “movimento das Quintas”.

A entrada oficial de Portugal na CEE ocasionou uma enorme torrente de fundos comunitários que foram usados para revolucionar o crescimento da viticultura, um pouco por todo o país.

O Alentejo foi responsável pela reconversão e ampliação de novas áreas de vinha e de novas adegas orientando-as para o mercado global. Este movimento foi determinante para a afirmação da, recente, região.

Também no Douro a influência dos fundos comunitários foi amplamente sentida. O Projecto de Desenvolvimento Rural Integrado de Trás-os-Montes (PDRITM), iniciado nos anos 80 e expandido na década seguinte, previa a recuperação de áreas de mortórios. Instalaram-se, com base neste programa, 2500 hectares de novas plantações naqueles locais e procedeu-se à replantação de 1000 hectares de vinha. Nessa década, através dos vários programas comunitários, o Douro reconverteu 4700 hectares, no total. Esta vasta área teve uma importância determinante na produção de vinhos nas décadas seguintes.

A inovação vitivinícola conheceu muitas facetas e ocorreram um pouco por todo o país. Durante a década de 90, por um lado, a ampelografia revelou muitos avanços determinantes ao nível da caracterização e identificação das castas.

Por outro lado, no ano de 1991, foi publicada a primeira legislação sobre a produção, certificação e comercialização das diferentes plantas que eram produzidas nos viveiros vitícolas. Também são desta altura as técnicas decorrentes da biotecnologia vegetal que permitiram uma melhoria genética substancial da espécie.

Não podemos esquecer igualmente o facto da consolidação da profissão de enólogo e de enólogo-consultor. Muitos fixaram-se num produtor em particular, como foi o caso de Luís Sottomayor na Sogrape, outros, como Anselmo Mendes, Paulo Laureano e Rui Reguinga, preferiram prestar os seus serviços a diversos produtores de Norte a Sul de Portugal.

Juntamente com os serviços prestados pelo enólogo, também apareceram inúmeros produtos enológicos: leveduras, aparas, e uma infindável panóplia de recursos capazes de transformar os vinhos num produto mais ao gosto do consumidor final ou de determinada visão do produtor.

Estas inovações permitiram uma enorme evolução na tecnologia de vinificação, especialmente no incremento da fermentação em ambientes controlados, na seleção de castas de melhor potencial enológico e na melhoria das técnicas vitícolas e enológicas.

Não será de estranhar que, com todos estes desenvolvimentos, os produtores tenham deixado de entregar as suas colheitas anuais às adegas cooperativas e se tenham transformado em produtores-engarrafadores para, desta forma, obterem um maior proveito dos seus vinhos.

Durante a década de 90 assistiu-se a um enorme incremento deste fenómeno iniciado na década anterior. Ficaria na história como o tempo dos “vinhos de Quinta” e alastraria no país como uma tempestade imparável.

Na verdade, muitas das marcas nacionais, que são hoje amplamente reconhecidas, foram criadas ou ganharam notoriedade na década de 90. É o caso da inauguração da Quinta dos Carvalhais, em 1990, no Dão. Também podemos referir, no mesmo ano, o lançamento da marca Duas Quintas e a produção de duas pipas de vinho por Dirk Niepoort que deram origem à referência Robustus. Ainda no mesmo ano foi criada a referência Pêra Manca por Colaço do Rosário e regressa à ribalta a Herdade do Mouchão, com o lançamento de um vinho memorável.

Em 1992 foi lançada a marca Duas Quintas Branco e Domingos Alves de Sousa revelou o Quinta da Gaivosa. Em 1994 surgiu a Quinta do Crasto e a Quinta do Mouro. Dois anos depois aparecem no mercado os vinhos da Quinta do Vale Dona Maria e em 1997 surgiu, pela mão de João Portugal Ramos, o Marquês de Borba Reserva. Por fim, em 1999, foram lançadas as referências: Chryseia, Quinta do Vale Meão e Quinta do Vallado.

Entretanto, em Bucelas, Nuno Cancela de Abreu iniciou o projeto da Quinta da Romeira e a empresa José Maria da Fonseca inaugurou uma nova adega que permitirá, a Domingos Soares Franco, novas experiências.  

Estes são apenas alguns apontamentos, na verdade todo o país vínico acordou para uma nova realidade.

É neste contexto que o guia “Vinhos de Portugal” surge nos escaparates das livrarias. Através dele podemos acompanhar uma fatia da nossa história vínica verdadeiramente sensacional e apaixonante.

Fim da 1ª Parte

Fontes:

– Afonso, J; Lopes, L (2014), A revolução do vinho in Revista de Vinhos nº 301, Cascais, Dezembro de 2014.

– Magalhães, Nuno (2007), Restruturação vitícola no Norte do país in Böhm, Jorge, (Coor), (2007), Portugal Vitícola: O grande livro das castas, Chaves Ferreira Publicações, Lisboa.

– Martins, J. P, (2016), Histórias com vinho & outros condimentos, Oficina do Livro, Alfragide.

– Pereira, M (2007), Acção e Património da Junta Nacional do Vinho (1937-1986), dissertação de mestrado não editado.

– Portela, J; Rebelo, V. (1997), O PDRITM na RDD: contribuição para a avaliação da sua execução e dos seus efeitos imediatos in Douro – Estudos & Documentos Vol. 1(3), 1997 (2º) 159-182.  

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