O vinho do Porto, o vapor “Porto” e o porto de Leixões

Mind the Glass
Leitor Wine & Stuff

29 de março de 1852. Manhã de nevoeiro. Chuva incessante.

O cavername do velho vapor “Porto”rangia furiosamente no meio das vagas alteradas ao largo da foz do Douro. No seu bojo os 37 passageiros e 29 tripulantes, muito cansados de uma agitada e abortada viagem, iniciada no dia anterior, aguardavam ansiosamente o sinal no alto do mastro do castelo de S. João da Foz do Douro que lhes autorizasse a entrada na barra.

Todos suspiraram de alívio quando o experiente capitão, António Pinto, acionou as rodas de água e apontou a roda do leme em direção à foz do Douro.

Gravura da Foz do Douro no século XVIII. Castelo de São João da Foz, com seus penedos.

Quando o pior parecia ter passado, ergueu-se uma enorme vaga que suspendeu a respiração dos passageiros e atirou o velho “Porto” para cima do afloramento rochoso denominado “forcado”, próximo do atual edifício do Instituto de Socorros a Naufragos.

Quase em uníssono, os passageiros gritaram para a margem em busca de um socorro rápido que salvasse as suas vidas. As pessoas que se aglomeraram nas margem do Douro assistiam atónitas e impotentes às inúmeras e infrutíferas tentativas de salvamento levadas a cabo pelas catraias dos pilotos da barra e pela arrais Manuel Firmino.

Com o passar do tempo as ondas fustigavam com maior intensidade o costado do vapor e a esperança de salvamento era cada vez menor. Do convés, as vozes surgiam num tom desesperado e lancinante. A população, que engrossava com o passar das horas, ouviu atónita a oferta do banqueiro José Allen que ofereceu toda a sua fortuna a quem salvasse as suas filhas.

Tudo em vão.

Uma onda maior partiu o vapor “Porto” ao meio afundando irremediavelmente o velho barco e com ele as 66 pessoas a bordo. Entre elas estavam o já referido José Allen e filhas, bem como António José Plácido, pai de Ana Plácido (que vivia com Camilo Castelo Branco) e de Antónia Cândida Plácido Vieira (casada com António Bernardo Ferreira, filho da “Ferreirinha“).

A derradeira onda que quebrou o vapor ao meio também teve o mesmo efeito no coração dos habitantes da cidade do Porto. A atividade comercial encerrou e as pessoas vestiram-se de luto.

O velho problema da barra do Douro

O trágico evento do vapor veio colocar um dedo bem afiado na enorme e velha ferida da falta de condições de navegabilidade na barra do Douro. Há muito que eram conhecidos os fatores de instabilidade deste porto, que era o segundo mais importante do reino, e dele dependia toda a atividade comercial da região Norte e, em especial, o negócio dos vinhos do Porto.

Por um lado, as correntes fluviais aliadas às marítimas eram um permanente fator de instabilidade na barra do Douro, no entanto, os maiores inconvenientes eram as cheias frequentes (anos houve em que a interrupção chegou a 60 dias), que limitavam ou impediam a navegação e o comércio.

Um problema decorrente deste, não menos gravoso, era a exposição dos barcos fundeados a permanentes avarias, o que limitava ainda mais o uso da barra.

Por outro lado, o início da década de 1850 marca alguma estabilidade política e uma melhoria nas condições de comércio catapultam as exportações médias, entre 1853 e 1856, para 42.500 pipas. O melhor resultado desde 1801.

Foi tempo de agir.

Logo nesse ano foi encomendado um projeto ao engenheiro Inglês Freebody que retomava a velha ideia de D. João V da construção de um porto artificial em Leixões servindo de apoio ao já edificado, sendo apresentado em 1855 e orçava em 3 818 115$000 reis.

Avanços e recuos

A questão das obras de requalificação na barra do Douro e ou na criação de um ante-porto de apoio em Leixões foi imediatamente envolta em polémica.

Por um lado, a criação do novo porto foi aplaudida pela população nacional e por alguns capitalistas estrangeiros que manifestaram interesse em participar no projeto.

Por outro lado, os comerciantes da zona da Ribeira e a Associação Comercial do Porto temiam que a deslocalização para Leixões originasse um decréscimo de tráfego, armazéns e indústrias, culminado na perda de importância do porto do Douro e de lucros nos negócios.

A questão Douro-Leixões foi de tal forma encarniçada que até 1869 foram apresentadas várias propostas de iniciativa na sociedade civil e governamental para a melhoria da barra do Douro.

Entre elas esteve o projeto denominado “Lavadores”, que muito agradou aos comerciantes da Ribeira, elaborado pelos engenheiros da W. Trery and Sons, e apresentado Eduardo Moser, pretendendo construir em frente da povoação Lavadores um ante-porto que comunicaria diretamente ao porto do Douro por um canal interior.

Ao longo desses anos foram gastos, em obras de recuperação, quase 2 000 000$000 reis mas a barra apresentaria sempre condições deficitárias. A agravar esta situação a navegação de vela foi paulatinamente substituída pela a vapor, o que aumentou a tonelagem dos navios e consequente fluxo portuário.

Por fim, o Governo pressionado pelos constantes pedidos das diversas partes decidiu nomear, em 1878, uma comissão para estudar as possibilidades de melhoramento da barra do Douro e à construção de um porto artificial em Leixões.

O Porto de Leixões

Na sequência dos trabalhos da comissão foi apresentado, em 24 de agosto de 1883, pelo engenheiro Nogueira Soares, o projeto definitivo para a construção do porto artificial de abrigo em Leixões.

Construção do porto de Leixões (molhe Norte)

A 16 de fevereiro de 1884 foi celebrado o contrato com a empresa Dauderni e Duparchy pela quantia de 4 489 000$000 reis. Esta terminou os trabalhos em 1892, mas desde 1888 mais de 1500 navios aportaram para abrigo e fizeram operações comerciais.

Entre 1886 e 1902 aportaram em Leixões mais de 6400 navios de vela e a vapor, quase metade deles fizeram operações comerciais e mais de 2500 entraram no porto apenas para abrigo.

Muitos milhares de vidas se pouparam às intempéries marítimas com este novo porto de Leixões e tudo se precipitou com a perca de 66 vidas, na manhã nublada e chuvosa de 1852. Por vezes é necessário que alguns pereçam para que o mundo salte e avance. Dá que pensar.

Fontes

– Cordeiro, José (2002) O naufrágio do Vapor “Porto” in Público consultada em 30/7/2022

– Pereira, Gaspar(cord.); (2010) História do Douro e do vinho do Porto, Edições Afrontamento, Porto

– Prata, Ana; (2011) Políticas Portuárias na I República (1880-1929), Caleidoscópio, Casal de Cambra

– Silva, Germano (2018) Naufrágio do Vapor “Porto” in Revista Visão consultada em 30/7/2022

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