O ato de provar um vinho que culmina numa opinião ou nota concisa e justa não se limita ao conteúdo que temos no copo. É inegável a quantidade de fatores externos que podem, e muitas vezes influenciam, a degustação de um vinho: a maior ou menor inclinação para uma denominação de origem, o grau de amizade com determinado produtor, o ano da colheita, a notoriedade das referências e, não menos importante, as campanhas de “marketing”.
A forma mais simples e mais utilizada para ultrapassar o “ruído” capaz de influenciar a prova de um vinho é, simplesmente, tapar o rótulo ou a garrafa.
Esta forma de provar vinhos ficou conhecida por prova cega e está longe de ser consensual. As críticas são bem conhecidas, uns argumentam que a história de um produtor faz parte da prova e por isso deve ser feita com o rótulo à vista. Outros referem a injustiça de comparar referências com gamas de preço muito díspares.
Apesar dos argumentos desfavoráveis ao uso desta metodologia de prova, eu continuo a achar que esta ainda é a forma mais justa e interessante de provar e comparar vinhos.
Como é evidente, para que uma prova cega decorra sem percalços é necessário definir bem a temática da prova. Não se misturam brancos com tintos, nem tão pouco vinhos tranquilos com vinhos de mesa.
A ascensão histórica da prova cega
Hoje em dia, as provas cegas são quase omnipresentes no mundo vínico. Nas redes sociais é com frequência que constatamos a sua prática em grupos mais ou menos informais. Os produtores usam-na para comparar colheitas de diferentes anos. Os órgãos de comunicação social utilizam esta metodologia para atribuir uma nota e escolherem aqueles que mais se destacaram ao longo do ano. Os diferentes concursos nacionais e internacionais, de maior ou menor dimensão, atribuem as medalhas aos vinhos tendo por base este tipo de prova.
Atualmente, a prova cega tem uma popularidade invejável, no entanto, esta não surgiu rapidamente. O momento mais marcante, que contribuiu decisivamente para a popularidade deste tipo de provas, foi o denominado “Julgamento de Paris”. Este evento decorreu no dia 24 de maio de 1976, em Paris, no entanto, a ideia começou a tomar forma muito antes.
Em abril de 1973, Steven Spurrier, abriu a primeira escola vínica privada em França, a “L’Académie du Vin”. Na altura, a gestão ficou a cargo de Patricia Gallagher. Algum tempo depois começaram a aperceber-se, através das provas que iam realizando, da enorme qualidade dos vinhos californianos tendo por base a “Chardonnay” e a “Cabernet”.
Pouco depois, Patricia Gallagher surgiu com a ideia de apresentar estes vinhos, através de uma prova, aos fazedores de opinião do mundo vínico francês. A data final do evento ficou marcada para coincidir com a comemoração do bicentenário da guerra civil americana: 24 de maio.
Entretanto, foram arrolados nove experientes provadores. Aparentemente, não foi difícil uma vez que, por um lado, a “L’Académie du Vin” já se tinha tornado um marco de qualidade e gozava de grande respeitabilidade. Por outro lado, Spurrier, já detinha excelentes contactos no mundo vínico e, por fim, a prova não teria fins comerciais.
Em março desse ano, Spurrier, deslocou-se à Califórnia e escolheu os seis exemplares de cada casta – apenas 5 foram utilizados na prova – que mais o tinham impressionado e enviou-os para Paris, através de um grupo de produtores californianos.
Tudo parecia estar a tomar o rumo certo para que se realizasse uma prova inesquecível na qual se comparariam vinhos provenientes de países diferentes (França e Estados Unidos da América) tendo por base as mesmas castas.
No entanto, surgiu uma preocupação muito pertinente. Será que os provadores dariam aos vinhos californianos a devida atenção uma vez que eram pouco conhecidos pelos jurados. A questão ficou resolvida rapidamente, Spurrier e Gallagher optaram por uma prova cega.
No dia da prova, os vinhos brancos foram servidos primeiro. A atmosfera era descontraída e à medida que decorria a prova, George Taber, o jornalista da revista Time (que não fazia parte dos jurados) apercebeu-se que estavam a pontuar os vinhos californianos como se fossem franceses. No fim da degustação os resultados foram apresentados e o vinho vencedor foi o Chateau Montelena Calistoga 1973. A surpresa foi geral.
Depois de conhecido o vinho branco mais pontuado, a atmosfera tinha-se transformado. De repente, à medida que os vinhos tintos eram provados, o ar tornara-se subitamente mais denso e tenso. No final, o vinho mais consensual foi o Stag´s Leap Wine Cellars 1973. O inesperado voltou a acontecer.
Poucos dias depois, George Taber envia o artigo, de oito páginas, para a revista “Time”. Este foi publicado a 7 de junho e as ondas de choque não se fizeram esperar. Odette Khan acusou Spurrier de viciar a prova e não confirmou as suas próprias notas atribuídas aos vinhos franceses. Na Borgonha, Aubert de Villaine passou por uns momentos mais conturbados devido ao mau resultado dos vinhos. Spurrier não voltou a comprar diretamente os vinhos de Pierre Ramonet, este último não permitiu.
O impacto da prova
Esta prova cega teve um impacto tremendo nos dois continentes. À medida que o artigo era conhecido, os telefones dos produtores da Califórnia não paravam de tocar. Do outro lado da linha estavam os distribuidores de vinho a implorar por algumas caixas que anteriormente recusaram vender.
Ao telefone do enólogo responsável pelo vinho Montelena (Mike Grgich) choviam propostas de emprego e pouco depois arrancaria o seu projeto denominado Grgich Hills.
Na altura, a loja de revenda do produtor Stag’s Leap era muito pequena para a quantidade de pessoas que faziam fila para adquirir o “Cabernet” vencedor. A venda ficou limitada a uma garrafa por cliente.
Esta prova cega marcou uma era, daí em diante os grandes vinhos, aqueles que todos gostariam de experimentar pelo menos uma vez na vida, não provinham apenas de França. Do outro lado do Atlântico havia agora novos vinhos procedentes da Califórnia a ter em conta. Aparentemente, a terra dos sonhos era real também para o mundo vínico.
As ondas de choque da prova cega de Paris chegariam ainda mais longe, muito mais longe.
O “Julgamento de Paris” levou a que muitos se lançassem na produção de vinhos californianos para satisfazer a procura de novos enófilos Em 1976 havia apenas um punhado de produtores de vinho na Califórnia. Entre 1976 e 1986 houve uma explosão na produção de vinho californiano.
Também são notórias as mudanças no encepamento. Na altura da prova, as castas mais plantadas eram a “Carignan” e a “Zinfandel”. A “Chardonnay” apenas ocuparia 8000 hectares. Hoje em dia é a casta mais usada.
Como é evidente, o sucesso nas vendas dos vinhos californianos levou a que outros produtores americanos, convencidos da qualidade dos seus vinhos, se inspirassem na prova cega de Paris para se autopromoverem.
O caso mais conhecido talvez tenha ocorrido em 2004, através do evento “Berlim Tastings” organizado pelo chileno Bernardo Chadwick. Este produtor decidiu comparar, em prova cega, os seus dois melhores vinhos com alguns dos renomados de Bordéus e de Itália. O júri, composto por 36 reconhecidos provadores, escolheu como melhores os dois vinhos de Chadwick. Não admira que posteriormente tenha reencenado a prova cega em mais 14 capitais mundiais.
É evidente que as provas cegas mudaram a forma como encaramos os vinhos e abriram portas a novas referências e ainda bem.
Ao analisar o percurso histórico de algumas referências que beneficiaram das provas cegas, tal como as californianas e chilenas, há uma questão que se impõe: Será que os vinhos nacionais não poderiam beneficiar de notoriedade internacional através deste tipo de provas?
Fica a questão.
Fontes: – Taber, G: O julgamento de Paris: Califórnia X França: a histórica degustação que revolucionou o mundo do vinho, Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
– Decanter, junho 2016, Volume 41. nº 9.