A região de Bordéus exerceu desde tempos imemoriáveis um grande fascínio em quase todos os enófilos, produtores e demais apaixonados pelo mundo vínico. Muitas pessoas percecionam os vinhos desta região como o arquétipo absoluto e inultrapassável. Daí também decorre a justificação para os preços estratosféricos que recorrentemente atingem no mercado mundial.
Os detentores destes néctares tendem a guarda-los religiosamente para posterior degustação como se se tratassem de gloriosos troféus. A simples conjugação, na primeira pessoa, do verbo visitar com os nomes próprios: Médoc, Pauillac, Margaux, Saint-Émilion, Sauternes, Pomerol, Pessac-Léognan, entre outros, é suficiente para manter uma audiência atenta durante largos minutos.
Os vinhos do Chateau Haut-Brion fazem parte desse imaginário mítico mundial e como enófilo curioso teria de perceber, mais de perto, o que se esconde por detrás deste manto, quase etéreo, de “glamour” e reconhecimento de um “terroir” único.
O conceito de “terroir”
O termo “terroir” deriva da palavra francesa para solo. Vários estudos sobre este tema apontam para uma ligação entre o terreno e a tipicidade dos vinhos, mais especificamente, entre o solo, o clima e a topografia que afeta o sabor das uvas e, portanto, o sabor dos vinhos, o que eleva a reputação do vinho.
No entanto, alguns autores enfatizam os aspetos intangíveis e culturais do “terroir”. Nestes podemos incluir as pessoas que estão conectadas à terra e às tradições de uma área.
Neste sentido, referindo-nos aos aspetos tangíveis do construto, Bordéus congrega uma miríade de microclimas que derivam do clima (temperado Atlântico), da inclinação das encostas, da exposição solar, da topografia, dos múltiplos tipos de solos (gravilha, barro e calcário) e das castas usadas (Merlot, Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Sémillon, Sauvignon Blanc, entre outras).
O Château Haut-Brion situa-se mesmo às portas da cidade de Bordéus e está completamente rodeado pela malha urbana da cidade. A vinha, com 48 hectares, é composta por Cabernet Sauvignon, Merlot e Cabernet Franc e está instalada numa pequena colina com uma elevação, que no seu ponto máximo atinge os 27 metros de altitude. Os solos consistem em cascalho de volume e cor variável. Há também manchas ocasionais de argila. O subsolo e a elevação proporcionam excelente drenagem e faz com que as raízes da videira cavem profundamente no chão em busca de água. A proximidade da propriedade com a cidade de Bordéus resulta num aumento marginal da temperatura média, resultando em maior amadurecimento das uvas.
Apesar das características tangíveis de “terroir” serem invejáveis é apenas com a complementaridade das características intangíveis ou sociais que este Château atinge uma dimensão ainda superior.
O “terroir” original
O Chateau Haut-Brion produz vinhos há quase 600 anos (sim, leu bem), tendo, por isso, uma das histórias mais longas e interessantes de qualquer vinhedo de Bordéus e talvez do mundo.
A data oficial do plantio das primeiras vinhas foi documentalmente estabelecida a 6 de setembro de 1426, com o objetivo de produzirem vinho para uma capela local fundada pelos monges Menuts. No entanto, é provável que estas terras tenham sido inicialmente plantadas por uma tribo Celta, no século I A.C., com o que era então uma nova casta muito mais resistente ao frio e percursora dos modernos clones de Cabernet: a Biturica. Esta inovação permitirá, nos séculos seguintes, abrir novos horizontes e inaugurar a era dos vinhos em Bordéus, depois na Europa e no mundo.
Muito embora se tenha produzido vinho durante muitos anos na área, foi apenas em 1533 que Jean de Pontac compra a mansão Haut-Brion e a une aos terrenos circundantes já na sua posse através do dote de casamento com sua esposa em 1525.
É interessante recordar que nesta altura Bordéus volta a integrar o reino de França, após o final da guerra dos 100 anos, e beneficia do incremento comercial com a Europa Ocidental e com a Terra Nova, através do seu porto fluvial. Desta forma, Haut-Brion beneficia igualmente destes tempos mais favoráveis para o comércio. Nos 100 anos seguintes os proprietários acumulariam títulos e fortuna.
A família Pontac, apesar de beneficiar grandemente com a venda de vinho, nunca se deixou embalar na modorra do sucesso. Em 1663, Armand III de Pontac, primeiro presidente do parlamento de Bordéus e engenhoso produtor, desenvolve algumas técnicas que lhe permitem envelhecer, com elevada qualidade, os seus vinhos. Por sua vez, as técnicas de envelhecimento permitiram explorar e aprofundar as particularidades de cada parcela originando o conceito de “Terroir”.
Este novo clarete permitiu ao Chateaux Haut-Brion atingir um sucesso de tal ordem que lhe permitiu estabelecer uma supremacia quase incontestável na região e fora dela.
Mais tarde, com a famosa classificação de 1855, viria a ser reconhecido como um dos mais renomados produtores de Bordéus e do mundo.
E os vinhos?
Quando se visita um produtor com uma história tão densa e tão longa, como é o caso deste, é muito difícil não nos sentirmos tocados pela vinha (irrepreensivelmente tratada e aparada) ou pela sala de barricas (cujo tanoeiro trabalha em exclusividade) ou ainda pela logística dos veículos refrigerados que vão trazendo as uvas para a adega para ser processadas.
No entanto, é na vasta sala de provas que todo o peso da história se abate sobre nós. Numa das paredes principais vislumbramos vários quadros pintados com os proprietários, deste secular Chateau, olhando quase intimidativamente para o provador.
No fim da prova, os aromas complexos a terra, alcatrão, couro, fumo e trufa resultam num estilo refinado e elegante.
Um dia inolvidável.
Fontes: – Lamendin, Laure (coord.): The essential handbook of Bordeaux wines, Paris, Éditions de La Martinière, 2016 .
– Chateaux Haut-Brion, edição de autor, 2016.