Mind the Glass

 

Em 1843 foi publicado anonimamente, em Londres, um folheto com um título incendiário e interminável, cuja tradução livre para Português, poderia ser a seguinte: “Uma ou duas palavras sobre Vinho do Porto, dirigidas ao público britânico em geral e com especialidade aos particulares; mostrando como e porquê se adulterou, e apontando alguns meios de se conhecerem as adulterações. Por um residente em Portugal há onze anos”.

Este panfleto gerou imediatamente uma grande polémica entre os negociantes da capital inglesa bem como aquando da publicação, passado um ano, na cidade do Porto.

Foram retomadas velhas rivalidades entre viticultores e negociantes sediados na cidade do Porto e de Londres. Os primeiros acusavam os segundos da adulteração do vinho do Porto ou, como era conhecido na altura, vinho fino.

O caso não era para menos. O vinho fino atravessava, desde o início dessa década, uma profunda crise comercial e para Joseph James Forrester, mais conhecido como Barão de Forrester, que mais tarde se veio a confirmar como o autor do panfleto, as razões estavam ligadas às mudanças de perfil do vinho ocorridas no ano de 1820. Alguns produtores também concordaram com estes argumentos.

Na primeira metade do século XIX, os consumidores Ingleses preferiam vinhos finos cada vez mais escuros, doces, fortes e estruturados e os importadores tentavam satisfazer os seus pedidos. No entanto, Forrester advogava a produção de vinhos menos doces, mais fermentados e com muito menos aguardente, ou seja, mais próximos dos originais mas precisamente o contrário do que era pedido pelos compradores estrangeiros e, consequentemente, pelos exportadores.

Nessa altura viveu-se, no Douro e em Gaia, um momento histórico na produção do vinho do Porto, no qual as duas tendências disputavam as preferências do mercado. Prevaleceu o “gosto inglês” pautado pela preferência por vinhos mais escuros, encorpados e doces, fruto da concorrência, entre outros, dos vinhos de Xerez em Inglaterra.

Muito embora o Barão de Forrester tenha morrido tragicamente, em 1861, num famoso naufrágio no rio Douro, os argumentos do panfleto acabaram por vingar, não da forma que ele tinha descrito, mas através dos vinhos do Douro que apresentam um perfil completamente seco e sem adição de açúcar.

Os vinhos

Algumas das quintas da região do Douro que têm vindo a produzir este tipo de vinhos apresentando uma qualidade excelente, estão ou estiveram ligados, de alguma forma, ao Barão de Forrester. É o caso da Quinta da Boavista. Logo após a sua chegada ao nosso país, esta quinta despertou o seu interesse e, muito provavelmente, arrendou-a ou comprou a sua produção vinícola ao longo da sua vida. A importância seria de tal forma grande que teria participado na replantação da quinta no período do surto do oídio, na década de 1850.

Atualmente, a Quinta da Boavista encontra-se na posse de Tony Smith e Marcelo Lima após aquisição à Sogrape em 2013. Esta localiza-se próxima do Pinhão, tem uma vista privilegiada sobre o rio Douro, e compreende 40 hectares de vinha muito antiga plantada com as tradicionais castas do Douro e mais algumas não identificadas, que um projeto de reconhecimento revelará brevemente. A equipa de enologia é encabeçada pelo enólogo Rui Cunha e tem o apoio do consultor Jean-Claude Berrouet, o antigo enólogo do Château Pétrus.

Os 4 vinhos produzidos pela Quinta da Boavista, em 2015, foram apresentados por um dos proprietários, Tony Smith, e pelo enólogo, Rui Cunha. Os vinhos foram acompanhados por um menu elaborado pelo “chef” Ricardo Costa, do hotel “The Yeatman” e confirmaram toda a qualidade a que nos têm habituado nos últimos anos.

O primeiro vinho servido foi o Boa-Vista Donzelinho Tinto 2015. Este revelou um aroma muito gracioso a frutos vermelhos e ligeiro floral, bem amparado por uns taninos delicados, leve, fresco, equilibrado, acidez marcada e muito elegante. Um vinho absolutamente surpreendente.

Seguiu-se o Boa-Vista Reserva Tinto 2015. O vinho, composto por um lote que combina vinhas jovens e antigas, libertou aromas complexos e profundos denotando fruta, flores e especiarias envoltas por uma barrica de excelente qualidade e elegância. Final longo.

O terceiro vinho servido foi o Quinta da Boavista Vinha do Oratório Tinto 2015. Este é proveniente de uma parcela única com mais de 25 anos e mais de 25 castas diferentes. De cor carregada, revelou aromas marcados pelas especiarias; fruta vermelha e preta madura; baunilha e notas balsâmicas. Na boca é muito sedoso, boa acidez, complexo, longo e com taninos redondos.

Por fim foi servido o Quinta da Boavista Vinha do Ujo Tinto 2015. Este é proveniente de uma parcela única virada a norte e com terraços muito estreitos. O vinho libertou aromas muito complexos remetendo para notas florais, pedra molhada, frutos silvestres. No entanto, é na boca que mostra todo o seu esplendor integrando a barrica e a fruta. Muito longo, estruturado, muito complexo e persistente. Um vinho extraordinário.

De regresso a casa não consegui deixar de pensar que toda a Quinta da Boavista está classificada com letra A, a melhor para a produção de vinho Porto. No entanto, a opção tomada pelos proprietários foi a aposta na produção de vinho do Douro. Ainda bem, pensei eu, e esbocei um aristocrático sorriso.

 

Fontes:

– Pereira, Gaspar, (1998) Quinta da Boavista. Breve referência histórica, NE.

– Pereira, Gaspar(cord.), (2010) História do Douro e do vinho do Porto, Edições Afrontamento, Porto

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